A colecionadora no novo centro cultural em Tiradentes: 291 imagens doadas ao Iphan

De um jardim cheio de roseiras cuidadosamente podadas, Angela Gutierrez grita aos vizinhos: “Gente, tem como parar esse barulho um minutinho? Estou gravando um vídeo aqui”. Apenas uma parede separa a sua residência da antiga Cadeia Pública de Tiradentes, que, depois de um processo desgastante, foi transformada em seu Museu de Sant’Ana. Neste sábado (20), ela vai abri-lo ao público e doar ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) 291 imagens da, segundo a tradição católica, avó de Jesus (leia mais sobre a devoção à santa no quadro da pág. 27). Aos 64 anos, completados no último dia 15, Angela é filha de um dos três fundadores da construtora Andrade Gutierrez. Ela figura na quadragésima posição entre os 150 bilionários brasileiros, de acordo com ranking divulgado pela revista Forbes Brasil neste mês — e é a mais rica entre as mulheres mineiras da lista, com patrimônio familiar estimado em 2,5 bilhões de reais. Rege com pulso firme uma fazenda, casas em Ouro Preto, Tiradentes e Belo Horizonte, o Instituto Cultural Flávio Gutierrez e, a partir de agora, três museus. Ela já era diretora do Museu do Oratório, inaugurado em 1998 em Ouro Preto, e do Museu de Artes e Ofícios, que funciona em Belo Horizonte desde 2005 na Praça da Estação. Diferentemente dessas duas coleções, formadas por objetos recolhidos por seu pai, o engenheiro Flávio Gutierrez (1925-1984), a maior parte do acervo do Museu de Sant’Ana é constituído de obras reunidas por ela própria. Devota da santa e apaixonada pela iconografia da mãe sábia que teria criado a jovem Maria, a empresária deu à sua única herdeira o nome da padroeira. Ana Gutierrez, que entrou no nono mês de gestação, espera para 10 de outubro sua primeira filha. O nome da mais nova Gutierrez? Maria.

Tamanha devoção tem explicação. Aos 14 anos, Angela ganhou de presente do pai um oratório com uma pequena Sant’Ana. A peça está hoje no Museu do Oratório e, segundo a colecionadora, é uma das lembranças mais marcantes de seu pai. Flávio Gutierrez percebeu cedo que a filha se interessava pelas peças antigas que ele trazia de viagens. Ele chegava a dar à menina alguns objetos só para que fossem restaurados e dizia: “Limpe direito. Acho que há um anjo debaixo dessa camada de tinta”. Aos poucos, Angela tomou gosto por restauração e passou a recuperar móveis, imagens sacras e objetos antigos. Surgiu também o interesse em colecionar arte de modo geral.

A empresária, formada em administração de empresas pela Fundação Getulio Vargas, não tem só oratórios e anjos barrocos em casa. Por todos os cômodos de sua residência em Tiradentes há elementos típicos do artesanato mineiro, como lustres coloridos, móveis rústicos e janelas coloniais pintadas de azul, e também muitas obras de arte moderna e contemporânea. Angela costuma frequentar exposições e leilões. Já adquiriu trabalhos de expoentes como Chanina, Fernando Luchesi e Maurino Araújo. “Eu gosto é de arte. Vou muito a Inhotim, por exemplo. Sou amiga do Bernardo Paz”, diz. Em sua fazenda em Inhaúma, ela mantém uma marcenaria e um ateliê de restauro que funciona o ano todo na recuperação de novas peças de seu acervo e na manutenção das já catalogadas. “Sem falsa modéstia, sou uma excelente restauradora”, gaba-se. “Noventa por cento das peças desse museu foram tratadas por mim.”

E não foi só do restauro que Angela participou. Mineiramente falando, a empresária “deu notícia de tudo”. Foi ela quem pensou em detalhes da montagem como a expografia, as cores das paredes e a disposição das peças. Cada pormenor da obra esteve sob sua supervisão. “Até na tubulação de esgoto ela deve ter dado palpite”, brinca a filha. O prédio da antiga cadeia vai abrigar, além das três salas de exposição permanente, um café, uma loja, um elevador para cadeirantes e um amplo espaço para eventos. Sobre a origem de seu acervo, que vira e mexe é questionada, ela garante que procura sempre saber a procedência das peças que adquire. “Isso é uma lei na minha vida de colecionadora”, diz. Uma lista com as especificações de todas as Sant’Anas foi enviada ao Iphan para atestar que nenhuma delas é roubada ou irregular.

O projeto do museu contou com um time de peso, que inclui nomes como os arquitetos Gustavo Penna e Pedro Mendes da Rocha, o iluminador Pedro Pederneiras, o pesquisador Adriano Ramos e os intelectuais José Alberto Nemer, Cristina Ávila e Angelo Oswaldo, que escreveram os textos da exposição. Ex-prefeito de Ouro Preto e atual presidente do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Oswaldo é também amigo de infância de Angela. “Ela é muito generosa e gosta de saber a opinião das pessoas, mas, como sabe fazer museus, acaba regendo tudo”, diz ele.

Mesmo com uma equipe afinada, acervo regularizado e apoio de fortes financiadores, como o BNDES – que investiu 4,8 milhões de reais na empreitada -, o processo de implantação do Museu de Sant’Ana não foi um mar de rosas. Dona de uma casa em Tiradentes há quinze anos, Angela sempre quis levar sua coleção de imagens para o prédio centenário da Cadeia Pública. O edifício, construído em 1833, propriedade da Fundação Rodrigo Mello Franco de Andrade desde 1970, estava sob gestão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e já havia abrigado exposições esporádicas de arte sacra. Técnicos do escritório do Iphan em Tiradentes resistiram aos planos de Angela, que era considerada uma forasteira ali. Em abril de 2012, cerca de 100 moradores se reuniram na porta da cadeia para defender a instalação do museu. “Depois dessa mobilização, eu me enchi de coragem novamente para seguir com o projeto”, lembra a mecenas. Os trâmites burocráticos, porém, foram bem maiores do que ela previa. “Infelizmente, é comum esse tipo de impasse em cidades como Tiradentes e Ouro Preto, onde os interesses pessoais às vezes se sobrepõem aos profissionais”, explica a superintendente do Iphan em Minas, Michele Arroyo. “Hoje isso está superado e temos o maior orgulho de receber a doação desse acervo, que agora pertence à União.”

Angela não pensa em fazer outro museu tão cedo e diz que os três têm a mesma importância. Mas deixa transparecer uma certa preferência. “São como filhos”, afirma. “E o filho mais novo você sabe como é, né?” Ela reservou para si cerca de dez imagens de Sant’Ana que adquiriu ao longo de trinta anos. Uma, que ficava na casa de sua mãe, dona Neném, vai para sua filha, Ana. Outras, menores, serão presente para a neta Maria. A ideia é incentivar na menina, desde cedo, o gosto por arte e por coleções. “Vou deixar as santinhas dela lá para ver se ela se apaixona”, explica Angela. “Ai, meu Deus, estou lascada!”, brinca Ana. “Vai começar tudo de novo!”

Museu de Sant’Ana. Rua Direita, 93, Centro, Tiradentes (a 196 quilômetros de Belo Horizonte), (32) 3355-2798. Quarta a segunda, 10h às 19h. R$ 5,00. www.museudesantana.org.br. A partir

deste sábado (20).

A história da devoção

Não há nenhuma menção na Bíblia a quem foi a mãe de Maria. No entanto, o evangelho apócrifo de São Tiago, escrito provavelmente na segunda metade do século II, aponta Ana como a mulher que gerou e criou a virgem que viria a ser a mãe de Jesus. Foi o papa Constantino I (708-715) quem introduziu o culto a Sant’Ana entre os católicos. A devoção à santa, considerada padroeira da família e dos lares (e, em Minas Gerais, também dos mineradores), atingiu o ápice no século XV. Geralmente as imagens a retratam com um livro nas mãos, ensinando as primeiras lições a Maria. A coleção de Angela Gutierrez reúne peças feitas no Brasil por artistas anônimos, entre os séculos XVII e XIX. Três delas poderão ser tocadas por deficientes visuais.

Fonte: vejabh.abril.com.br

24/09/14